Avançar para o conteúdo principal

Não é o que dizes, é a forma de como o dizes, por José Eduardo Oliveira


I- A decisão de 5 de maio do Tribunal Constitucional Federal Alemão tem gerado discussão acesa sobre fundamentalmente dois pontos: o primeiro, sobre a manutenção da virilidade das instituições europeias depois do choque do conteúdo da decisão, e o segundo quanto à questão de saber se podemos sequer admitir que um Estado-Membro desafie julgar da conformidade dos atos daquelas. Vamos por pontos, mas antes uma contextualização.
II- Sinteticamente, o Tribunal considerou ser de duvidosa legalidade (nos termos do Direito da União, claro está) os instrumentos que foram sido paulatinamente criados pelo Banco Central Europeu (“BCE”) ao longo, fundamentalmente, do mandato do seu anterior presidente, Mario Draghi, que admitiam a compra de títulos de dívida pública dos Estados Membros por parte do Banco, no mercado secundário (isto é, revendidos). Estas operações, que servem de financiamento aos Estados, ficaram conhecidas por Public Sector Purchase Programme (“PSPP”) ou, na bastante caricaturável linguagem jornalística, “Bazuca do BCE” ou de “Kriptonite de Super Mário”[1]. O objetivo dos instrumentos está ligado à política própria do BCE, com a conhecida finalidade de alcance de taxas de inflação abaixo, mas perto, de 2%, visando a manutenção da estabilidade dos preços.
Deixo a nota que a decisão não tem que ver com eventuais instrumentos utilizáveis, de semelhante natureza, no contexto Covid 19, os  Pandemic Emergency Purchase Programme (“PEPP”).
Em termos latos, o tribunal ofereceu um prazo de três meses para o BCE justificar estas operações ao nível do Direito da União.
Estamos em condições de prosseguir.
III- Em relação ao primeiro ponto, julgo serem exagerados os comentários que insinuam ser esta decisão o prelúdio do fim da União. Pelo contrário, vejo-a como um ato legítimo de escrutínio do trabalho das instituições. A crítica, como em tudo na vida, pode de facto fortalecer os nossos pontos de vista e pode ajudar a sustentá-los melhor.
Estaríamos muito mal se, ao apenas apreciarmos os seus defeitos, comprometêssemos anos de progresso. É para mim inaceitável que venha a ser criticada a decisão no sentido em que faz aquilo que lhe compete: verificar a legalidade.
A bola está, pois, neste momento nas instituições. São elas que terão a responsabilidade de responder, ou não, ao conteúdo da decisão. E o que se viu até agora é a continuação de um olhar sobranceiro burocrático das mesmas, cuja resposta seca não melhorará a perceção pública da questão.
IV- Depois, julgo normal um Estado decidir averiguar se a entidade que sustenta está a cumprir com as regras fundamentais que a rege. Como já se disse, são os Estados que suportam a União, e não o seu contrário[2].
Mas mais, a decisão é dirigida apenas aos órgãos de soberania alemães e nessa medida não ofende os demais Estados. Ao referir-se que um ato que julga inválido (ultra vires¸ além dos limites sobre os quais podia ir) não vincula o Estado Membro, oferece a possibilidade da União se justificar e, até aí, tudo bem.
Estou, contudo, com Poiares Maduro, quando afirma que não crê que o BCE possa e venha a cumprir o acórdão. Ao fazê-lo, mais do que abrir as portas para uma supervisão nacional das instituições da União, iniciava o terrível precedente de as mesmas instituições se justificarem aos órgãos nacionais e não à União, e é aí que reside o problema. A união deve responder perante os Estados e os Estados devem escrutinar os atos da União. Coisa bem diferente é partes (as instituições) de um grupo (a União) responderem a partes (tribunais) de outro (Estados-Membros).
V- Mas, como em tudo, o diabo está nos detalhes. Esta é a primeira vez que um tribunal nacional decide, com esta amplitude, questionar os atos da União. De facto, o que mais admira na decisão é o tom defensivo em que coloca os termos da atuação da União.
Nesse sentido, sim, pode dizer-se que a virilidade e autoridade das instituições fica abalada, que o tribunal está a desconsiderar o esforço da União e, em suma, que não existe consenso sobre como alcançar os objetivos da União – e quiçá dirá alguma coisa sobre o empenho (se quisermos ser mais justos, a corresponsabilização, a vontade de partilha do risco) da Alemanha no projeto europeu (fica-me a questão).
VI- Mas, mais do que isso, representa um precedente tóxico para que outros Estados tentem desafiar a atuação da União. Imagine-se o que determinados estados com duvidosa relação com princípios democráticos (sim, estou a falar da Húngria) podem fazer com este precedente.
Claro está que esta é uma decisão de um tribunal e não de um governo. Acredito que a mesma não foi de qualquer forma influenciada por motivos que sejam extrajurídicos, mas o dano está lá. Pessoalmente, vejo a atuação do BCE como um necessário desenvolvimento da política monetária numa Europa cada vez mais interdependente e corresponsável.
Ainda assim, há uma estranheza envolta da decisão: uma de timing e outra de tom. Saliento que já o Tribunal de Justiça da UE se pronunciou no sentido de não considerar o PSPP desconforme ao Direito da União.
Então, porquê esta decisão agora? Porquê o tom corretivo e paroquial? São as questões que me ficam.
Talvez a decisão em si não traga mal nenhum ao mundo, mas o desconforto que cria será certamente motivo de afrouxamento da união, num momento em que muito precisamos dela.
Resumindo: não é o que dizes, é a forma de como o dizes.

José Eduardo Oliveira,
joseoliveira5797@gmail.com

NOTA DO AUTOR:
A caricatura é de James Ferguson. Vi-a na coluna de Martin Wolf no Financial Times, de 12 de maio[3].

 


[1] https://observador.pt/especiais/a-kriptonite-de-super-mario-a-decisao-do-tribunal-constitucional-alemao-sobre-a-politica-do-bce/.
[2] https://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/colunistas/francisco-mendes-da-silva/detalhe/em-defesa-do-tribunal-constitucional-alemao?ref=francisco-mendes-da-silva_BlocoOpiniao

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Inimigo número 1, por Ângelo Daniel A. Silva

Não será difícil perceber o quão extremadas estão hoje as posições. As crises nisso, sem sombra para dúvidas, são realmente diabólicas. Entenda a cara pessoa que lê esta pequena opinião que as crises não são novas. Pandemias não são novas. Mas sobretudo as tentativas de mudança de paradigma, seja de que maneira for, não são, igualmente, novas. Posso não ser muito velho neste mundo e não conhecer todos os detalhes que me rodeiam, anormal seria, porém não posso deixar de afirmar que tendo a ver uma certa euforia em demasia em relação aos tempos recentes. Há que deixar claro que pandemias destas assolam gerações em gerações e nunca deixarão de assolar, por muito que tentemos. A natureza é mesmo assim. Sabendo isto, é de difícil compreensão o porquê de toda a vez que somos confrontados com um passatempo passageiro, sermos quase levados, como que ao colinho, por ideologias, argumentos e sistemas falhados já no passado. Tal e qual como as pandemias e as crises, elas/es voltam, porém já não p

A Constituição é “para inglês ler” e outros arrelios em tempos de confinamento, por José Eduardo Oliveira

Tive recentemente a oportunidade de escrever neste espaço, o que é para mim um grande gosto. Pretendo, de forma própria, trazer a debate pequenas reflexões sobre determinados assuntos que me preocupam, tentando alargar a respetiva reflexão. Os comentários vão em jeito de breves notas, o que se deve, essencialmente, a dois motivos. O primeiro, a tentativa em ser breve: julgo não precisarmos de muito para dizer muito. Depois, e numa nota mais particular, porque não me quero obrigar a ser perentório. As reflexões que se seguem destinam-se a reparar ou notar determinadas inquietudes e quase nada mais; o resto fica para o leitor. I.     Vivemos tempos de anomia e de exceção. A atual situação pandémica tomou aos poucos os nossos pensamentos e, a uma velocidade generosa, vai-nos talhando determinadas liberdades. Não podíamos esperar outra coisa, uma vez que, como se disse, vivemos tempos de exceção. Nem por isso deixei de ficar admirado quando, no passado dia 27 de

A Dívida, o Investimento e as eleições em Oliveira de Azeméis, por José Eduardo Oliveira

I.          O atual executivo camarário oliveirense, liderado pelo Partido Socialista, assumiu a tarefa de liquidar na totalidade, e até 2021, a dívida [1] do Município. Durante todo o atual mandato autárquico, a população oliveirense viu-se confrontada com um vaivém de notícias sobre a situação da dívida Municipal sem que para isso tivessem sido apresentados dados concretos que mostrassem o real desempenho das contas locais. Ora em 2018 a Câmara apresentava resultados “extraordinários” [2] que refletiam um putativo endividamento nulo, ora gabava-se o Presidente da Câmara que a redução de dívida se devia à diminuição, entre outros, “em cerca de 50% no custo de eventos culturais, como a Noite Branca e o Mercado à Moda Antiga” [3] . Temos por assente que a situação financeira de qualquer entidade é da máxima importância, de que o cumprimento das obrigações que assumimos revela um importante exercício de exigência, de rigor que trará benefícios a longo prazo. Contudo, como pode, um