I- A decisão de 5 de maio do
Tribunal Constitucional Federal Alemão tem gerado discussão acesa sobre
fundamentalmente dois pontos: o primeiro, sobre a manutenção da virilidade das
instituições europeias depois do choque do conteúdo da decisão, e o segundo
quanto à questão de saber se podemos sequer admitir que um Estado-Membro
desafie julgar da conformidade dos atos daquelas. Vamos por pontos, mas antes
uma contextualização.
II- Sinteticamente,
o Tribunal considerou ser de duvidosa legalidade (nos termos do Direito da
União, claro está) os instrumentos que foram sido paulatinamente criados pelo
Banco Central Europeu (“BCE”) ao longo, fundamentalmente, do mandato do seu
anterior presidente, Mario Draghi, que admitiam a compra de títulos de dívida
pública dos Estados Membros por parte do Banco, no mercado secundário (isto é,
revendidos). Estas operações, que servem de financiamento aos Estados, ficaram
conhecidas por Public Sector Purchase Programme (“PSPP”) ou,
na bastante caricaturável linguagem jornalística, “Bazuca do BCE” ou de
“Kriptonite de Super Mário”[1]. O objetivo dos instrumentos
está ligado à política própria do BCE, com a conhecida finalidade de alcance de
taxas de inflação abaixo, mas perto, de 2%, visando a manutenção da estabilidade
dos preços.
Deixo a nota que
a decisão não tem que ver com eventuais instrumentos utilizáveis, de semelhante
natureza, no contexto Covid 19, os Pandemic Emergency Purchase Programme
(“PEPP”).
Em termos latos, o tribunal ofereceu
um prazo de três meses para o BCE justificar estas operações ao nível do
Direito da União.
Estamos em condições de prosseguir.
III- Em relação
ao primeiro ponto, julgo serem exagerados os comentários que insinuam ser esta
decisão o prelúdio do fim da União. Pelo contrário, vejo-a como um ato legítimo
de escrutínio do trabalho das instituições. A crítica, como em tudo na vida,
pode de facto fortalecer os nossos pontos de vista e pode ajudar a sustentá-los
melhor.
Estaríamos muito
mal se, ao apenas apreciarmos os seus defeitos, comprometêssemos anos de
progresso. É para mim inaceitável que venha a ser criticada a decisão no
sentido em que faz aquilo que lhe compete: verificar a legalidade.
A bola está,
pois, neste momento nas instituições. São elas que terão a responsabilidade de
responder, ou não, ao conteúdo da decisão. E o que se viu até agora é a
continuação de um olhar sobranceiro burocrático das mesmas, cuja resposta seca
não melhorará a perceção pública da questão.
IV- Depois, julgo
normal um Estado decidir averiguar se a entidade que sustenta está a cumprir
com as regras fundamentais que a rege. Como já se disse, são os Estados que
suportam a União, e não o seu contrário[2].
Mas mais, a
decisão é dirigida apenas aos órgãos de soberania alemães e nessa medida não
ofende os demais Estados. Ao referir-se que um ato que julga inválido (ultra vires¸ além dos limites sobre os
quais podia ir) não vincula o Estado Membro, oferece a possibilidade da União
se justificar e, até aí, tudo bem.
Estou, contudo,
com Poiares Maduro, quando afirma que não crê que o BCE possa e venha a cumprir
o acórdão. Ao fazê-lo, mais do que abrir as portas para uma supervisão nacional
das instituições da União, iniciava o terrível precedente de as mesmas
instituições se justificarem aos órgãos nacionais e não à União, e é aí que
reside o problema. A união deve responder perante os Estados e os Estados devem
escrutinar os atos da União. Coisa bem diferente é partes (as instituições) de
um grupo (a União) responderem a partes (tribunais) de outro (Estados-Membros).
V- Mas, como
em tudo, o diabo está nos detalhes. Esta é a primeira vez que um tribunal
nacional decide, com esta amplitude, questionar os atos da União. De facto, o
que mais admira na decisão é o tom defensivo em que coloca os termos da atuação
da União.
Nesse sentido,
sim, pode dizer-se que a virilidade e autoridade das instituições fica abalada,
que o tribunal está a desconsiderar o esforço da União e, em suma, que não
existe consenso sobre como alcançar os objetivos da União – e quiçá dirá alguma
coisa sobre o empenho (se quisermos ser mais justos, a corresponsabilização, a vontade de partilha do risco) da Alemanha no projeto europeu (fica-me a
questão).
VI- Mas, mais do
que isso, representa um precedente tóxico para que outros Estados tentem
desafiar a atuação da União. Imagine-se o que determinados estados com duvidosa
relação com princípios democráticos (sim, estou a falar da Húngria) podem fazer
com este precedente.
Claro está que
esta é uma decisão de um tribunal e não de um governo. Acredito que a mesma não
foi de qualquer forma influenciada por motivos que sejam extrajurídicos, mas o
dano está lá. Pessoalmente, vejo a atuação do BCE como um necessário
desenvolvimento da política monetária numa Europa cada vez mais interdependente
e corresponsável.
Ainda assim, há
uma estranheza envolta da decisão: uma de timing
e outra de tom. Saliento que já o
Tribunal de Justiça da UE se pronunciou no sentido de não considerar o PSPP
desconforme ao Direito da União.
Então, porquê
esta decisão agora? Porquê o tom corretivo e paroquial? São as questões que me
ficam.
Talvez a decisão
em si não traga mal nenhum ao mundo, mas o desconforto que cria será certamente
motivo de afrouxamento da união, num momento em que muito precisamos dela.
Resumindo: não é o que dizes, é a forma de como o dizes.
José Eduardo Oliveira,
joseoliveira5797@gmail.com
NOTA DO AUTOR:
A caricatura é de James Ferguson. Vi-a na coluna de Martin
Wolf no Financial Times, de 12 de maio[3].
[1]
https://observador.pt/especiais/a-kriptonite-de-super-mario-a-decisao-do-tribunal-constitucional-alemao-sobre-a-politica-do-bce/.
[2]
https://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/colunistas/francisco-mendes-da-silva/detalhe/em-defesa-do-tribunal-constitucional-alemao?ref=francisco-mendes-da-silva_BlocoOpiniao
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